Fora dos trilhos: Matemáticas em correntes e turbilhões |
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        O filósofo Michel Serres (1930-2019) percebeu a afinidade entre o mundo físico da
filosofia de Epicuro (341 a.C a 270 a.C) e a matemática de Arquimedes (287 a.C a 212 a.C). Ele argumentou que os gregos
antigos não tinham uma física-matemática unitária como passamos a ter após o Renascimento, e na ausência de uma linguagem
comum, produziram dois blocos linguísticos separados: sistemas formais rigorosos e discursos da natureza. Mas há um
isomorfismo entre estes blocos que revela a presença da filosofia de Epicuro na produção físico-matemática de
Arquimedes (Serres 1997 p.25).
        Nos interessa aqui ressaltar em que sentido essa produção diverge do pensamento científico-tecnológico que se segue até os nossos dias.         Nos interessa também verificar que as explicações se aproximam da vida, e do medo da morte, afastando-se da racionalidade platônica e de uma arrumação formal de argumentos.         Nos interessa perceber que Arquimedes não somente constrói uma matemática que se fundamenta na prática, mas que o faz com consciência e reflete sobre a separação entre a prática e o formal.         Nos interessa ainda ressaltar que, seja no enunciado de um teorema (como em Arquimedes), ou na descrição de uma teoria física (como em Lucrécio) a forma como a mensagem é expressa determina o seu prestígio enquanto ciência, como veremos mais adiante, aderindo ou afastando-se a/de uma ciência nômade ou a uma Ciência de Estado (Deleuze & Guatarri 2012 p. 25). |
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        Epicuro justificava o conhecimento nas sensações e afetos, considerando que a razão era propensa a enganos. Marcou assim um contraponto à racionalidade platônica sobre a qual se assenta a construção da filosofia ocidental. Sua compreensão do mundo físico e do surgimento das coisas baseava-se numa concepção atomista adaptada de Demócrito (460 a.C a 370 a.C), que tudo explicava na arrumação de átomos em meio ao vazio, onde o termo “átomos” designava as partículas indivisíveis da matéria.         Muito se perdeu do trabalho de Epicuro, mas Tito Lucrécio (99 a.C a 55a.C) tomou para si a tarefa de registrar no poema “Sobre a natureza das coisas” (De rerum natura) uma recomposição de parte de obra de Epicuro. Por que em versos? Em versos, Lucrécio explica: |
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            De facto, parece-me isto ter a sua razão de ser:
            na verdade, tal como os médicos, quando se esforçam             por dar às crianças repugnantes absintos, untam primeiro             os bordos das taças com o doce e dourado líquido do mel,             para ludibriar, só até aos lábios, a idade incauta das crianças             e fazê-las assim beber de um trago o amargo líquido do absinto,             e conseguir que, apesar de estarem a ser enganadas             não sejam prejudicadas, mas antes robustecidas             por este procedimento e recobrem a saúde.             Assim também eu quis expor-te esta minha doutrina             por meio da suaviloquente poesia das Piérides             e como que tocá-la com o doce mel das Musas             (Lucrécio 2015 apud Simões 2017) |
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        Assim, a filosofia de Epicuro é uma ciência dos fluidos. Lucrécio fala de declinação (clinâmen), um pequeno desvio que átomos sofrem quando caem em queda livre (escoamento laminar). Não há uma explicação aparente. O desvio é o “pouco necessário para que seja possível dizer, com isso, que seu movimento mudou”, frisa Serres, ressaltando a filiação do atomismo em relação ao cálculo infinitesimal e ao conceito de diferencial (1997 p.13). No livro II, Lucrécio conta que esse pequeno desvio causa uma rearrumação dos átomos, dando origem a tudo que há no mundo. Vê-se portanto que, em De rerum natura, as explicações sobre o surgimento das coisas se fundamentam no movimento e na desordem, não na estabilidade, não no equilíbrio. Uma ciência dos fluidos, com explicações inexatas (“o pouco necessário”, “sem motivo aparente”), agrega o caos, focaliza o desvio e se explica no turbilhão, é uma ciência que se aproxima do sensível. Abre o caminho para a matemática anexata de Arquimedes. |
        Por que Arquimedes levou à frente a hidrostática, mecânica dos fluidos?         Serres (1997 p. 17) conjectura que “talvez o mundo mediterrâneo caressece mais de água que de instrumentos, talvez se inquietasse mais com chuvas, tempestades, rios. Construía reservatórios e aquedutos. A hidráulica importava-lhe”. Daí a principal distinção do que veio a gerar a ciência moderna: a fisica-matemática de Epicuro-Arquimedes-Lucrécio era uma ciência do movimento, não da estática.         Por que o quadro geral da mecânica destacava, e destaca até hoje, a mecânica dos sólidos (estática)?         Serres traz uma resposta, buscando verificar porque o clinâmen, soa como um absurdo (Serres 1997 p.12). Ele aponta que desde Galileu, marco inicial da física moderna, a queda dos átomos foi estudada no contexto da mecânica dos sólidos, sendo a mecânica dos fluidos “apenas um caso particular, que os grandes tratados, o de Lagrange por exemplo, só consideravam no final, e marginalmente” (Serres 1997 p.14). |
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        O traçado histórico linear (do qual Epicuro escapa) em que a ciência moderna assentou suas justificativas racionais mostra que Parmênides de Eléia (530 a.C a 460 a.C) já havia apostado na estabilidade, imobilidade e imutabilidade das coisas que há no mundo. Em versos hexâmetros, ele diz que “se alguma coisa existe, não pode nascer ou perecer, transformar-se ou mover-se, nem estar sujeita a qualquer imperfeição.” (Kirk Raven e Shofield 2010 p.251) Os argumentos de Parmênides e as suas paradoxais conclusões tiveram uma enorme influência na filosofia grega posterior; segundo Kirk, Raven e Shofield, um alcance comparado ao cogito de Descartes. A Escola Eleática, à qual pertenceu ele e seu discípulo Zenão de Eléia (495 a.C 425 a.C) valorizou a razão sobre o sensível (Kirk Raven e Shofield 2010 p.168), de onde derivou-se A = A, a Lei da Identidade. Uma coisa é igual a ela mesma, não há transformação, nem movimento. É a lei do equilíbrio, da coisa estática. Zenão seguiu as conclusões paradoxais de Parmênides e sustentou a unicidade e imobilidade em paradoxos. Vemos a unicidade no diálogo Parmênides, de Platão:
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        Da mesma forma, trabalhando com uma contraposição entre o sensível e as formas discursivas, Zenão formulou o paradoxo de Aquiles, mostrando que tempo e movimento não são possíveis. Segundo Kirk, Raven e Shofield, (2010 p.277), "o paradoxo de Aquiles destinava-se, talvez, a provar que, se há muitas coisas, cada uma delas deve ser simultaneamente mais rápida e mais lenta que as outras".         Daí se estabeleceria a ciência moderna com vistas ao equilíbrio das coisas. Arquimedes trabalhou em outras bases. Diz Serres que o que ele indica no início de seu livro é que “a igualdade ou o equilíbrio são apenas casos particulares de proporções ou de ângulos” (Serres 1997 p.37). Assim, fica claro que para compreender o equilíbrio é necessário estudar o desequilíbrio. É um contra-sentido, uma dobra, uma estratégia no conhecimento. Uma percepção que se fará necessária e evidente ao longo da história (Cafezeiro Kubrusly Cafezeiro 2016 p.105-106). |
        Arquimedes, foi um matemático cuja obra e registros históricos mostram uma clara aderência com a
vida, impossibilidade em separar uma matemática da vida e de uma outra abstrata. Deixou isto claro
em carta a Erastostenes: “muito do que me foi evidenciado pelo meio da mecânica foi posteriormente comprovado por meio
da geometria” (Archimedes 1909 p.10 tradução livre do inglês). Ele partia de experimentações mecânicas para construir
suas hipóteses, e então construía demonstrações geométricas. No entanto, sabemos hoje que ele percebeu a necessidade de
expressar sua matemática em termos dedutivos. No ano de 1906 o filólogo dinamarquês Johan Ludvig Heiberg teve acesso a um
pergaminho da Grécia antiga, cujo conteúdo havia sido apagado e sobrescrito com textos litúrgicos, o que era uma prática
frequente na idade média. Heiberg conseguiu decifrar os escritos originais e identificou textos de Arquimedes. Dentre
eles, a carta a Erastóstenes, onde Arquimedes reconheceu a necessidade de uma versão dedutiva para seus resultados e
delegou a Erastóstenes essa tarefa:
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        Ele explica seu modo de pensar a matemática: “Pois é claro que é mais fácil de estabelecer uma prova no caso de se haver obtido antes uma concepção das perguntas, do que procurá-la sem uma noção preliminar” (Archimedes 1909 p.10). Em seguida, Arquimedes denuncia uma situação anterior em que a concepção da prova por Eudoxo se sobrepôs à concepção da ideia por Demócrito: |
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        Mas, identificando a sua própria situação com o episódio de Eudoxo e Demócrito, chama atenção à essencialidade do trabalho de concepção de conceitos na matemática da vida e não abre mão de seu papel como matemático, e nem do método de buscar na mecânica o que a geometria viria a confirmar:
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        A morte de Arquimedes (212 a.c.) em Siracusa serve de marco histórico ao período de fortalecimento do Império Romano e seu domínio sobre o entorno do mar mediterrâneo. Dos relatos de Plutarco podemos crer que a história segue seu tempo no deslumbramento das invenções de Arquimedes. | ||||
        Arquimedes (...) estava então, como o destino desejara, decidido a trabalhar sobre algum problema por meio de um diagrama, e tendo fixado sua mente tanto quanto seus os olhos no assunto de sua especulação, não notou a incursão dos romanos, nem que a cidade foi tomada. Nesse transporte de estudo e contemplação, um soldado, inesperadamente chegando até ele, ordenou-lhe que seguisse a Marcellus; o que ele se recusou a fazer antes de ter resolvido seu problema. O soldado enfurecido puxou sua espada e o atravessou. Outros escrevem que um soldado romano, correndo até ele com uma espada desembainhada, avançou para matá-lo; e que Arquimedes, olhando para trás, buscou segurar sua mão um pouco, para não interromper o que estava então trabalhando, inconclusivo e imperfeito. Mas o soldado, nada comovido, instantaneamente o matou. Outros relatam que Arquimedes estava levando para Marcellus instrumentos matemáticos, mostradores, esferas e ângulos, pelos quais a magnitude do sol podia ser medida à vista. Alguns soldados o vendo e pensando que ele carregava ouro em um vaso, o mataram. (Plutarco 1839 tradução nossa a partir do inglês) |
        As novas tecnologias daquele tempo e lugar deixaram aparente um fazer científico impregnado de vida, e não completamente submisso ao saber hegemônico. No entanto, já no início do Império Romano, os 12 apóstolos de Cristo iniciaram a difusão de uma fé a partir tradição judaica, sustentada em um Deus único, abstrato. Era um deus totalizador, todo poderoso, em contraponto ao politeísmo grego, onde diversos deuses exibiam habilidades e responsabilidades diversas, completando-se e às vezes opondo-se em violentas disputas. O deus cristão era dotado de uma essência divina, puramente divino, uma harmonia total decorrente da unicidade.         Em contraste, a cultura da Grécia antiga era essencialmente híbrida e acolhedora à diversidade. Para os gregos, masculino e feminino podiam coexistir num único corpo como Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite que que tinha os dois sexos no mesmo corpo, ao mesmo tempo homem e mulher ou nem homem nem mulher. Acolhiam seres humanos-animais, como os centauros, meio homem, meio touro. Deuses e humanos podiam viver, amar, odiar e procriar no mesmo território e tempo. Os deuses gregos tinham um endereço, o Monte Olimpo, que podia ser visto e apontado com o dedo. O amor entre deuses e humanos também era possível e daí geravam-se semi-deuses, como Hércules, filho de Zeus com a mortal Acmena. |
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        Em contrapartida, o deus cristão habitava um espaço inacessível aos humanos. Centramento, totalização e essencialidade de um Deus único já dão indícios de uma forma de pensamento que se estabelecia na sociedade e que viria a se fortalecer por muitos séculos.         Essa forma de pensamento que se fez evidente na religião acompanhou a sociedade como um todo, manifestando-se também nas expressões das ciências, nas produções das tecnologias, e consequentemente, nas expressões matemáticas, onde o encontro (dos corpos) não é possível ~(A e ~A) e não há uma via alternativa (A ou ~A). Assim se expressam as três Leis da Lógica Clássica, sobre as quais se assentam o empreendimento ocidental da ciência. A primeira lei, formulada por Parmênides, a Lei da Identidade. As seguintes, Lei da Não Contradição e Lei do Terceiro Excluído formuladas por Aristóteles na Metafísica, Livro IV (Reale 2002 p.143), e em Da Interpretação (Aristotle 2018). A Escola Peripatética, onde movimento já se fazia presente na construção do conhecimento que era elaborado no caminhar, sustentava uma abordagem empírica, contrapondo-se ao racionalismo de Platão, mas, possivelmente pelas mãos dos comentaristas que vieram depois, os tratados de Aristóteles foram organizados de modo a isolar raciocínio e razão como instrumentos para a ciência. Configurou-se, a partir de então, um modo de pensamento que se estabelece em uma separação precisa entre dois valores opostos e essencialmente puros.         No decorrer da ocupação romana a ausência de uma imposição religiosa possibilitou a coexistência de diversas formas de paganismo. Politeístas, as divindades eram encontradas na natureza. No entanto, em certos momentos, a perseguição do Império Romano aos cristãos se intensificou.         Na transição dos séculos III para século IV, quando o Império Romano já entrava em decadência, o Imperador precisou reafirmar sua autoridade através de uma divindade protetora, como era costume na cultura pagã e garantir a “paz dos deuses”. Os cristãos não aceitavam a divindade do imperador e passaram a ocupar a ilegalidade. Daí se instalou uma “política da intolerância” que não se isolou no plano religioso, mas como uma escolha política, já que a associação do imperador com a divindade fortaleceria a manutenção do poder instituído (Oliveira 2010).         Intensificou-se a perseguição aos cristãos. Ainda assim, o cristianismo se fortaleceu. Nas primeiras décadas do século IV, o imperador Constantino se mostrou tolerante ao cristianismo pela promulgação do Édito de Milão (Santos 2006). Pouco mais tarde, no ano 380, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano pela promulgação do Édito de Tessalônica (Papa 2016) e, a partir daí, adentrou o período que chamamos de Idade Média (dos séculos V ao XV) e forçando uma reinvenção do legado da antiguidade nesses novos parâmetros totalizadores, centralizadores e essencialistas, onde demandas e inquietações seriam explicadas pela fé.         Aí se estabeleceu uma organização política semelhante e paralela ao império, onde o papa passou a figurar como chefe da igreja. “O poder temporal e o poder religioso passaram a se complementar e em pouco tempo se deu uma subordinação do poder temporal pelo religioso” (D’Ambrosio 1996 p. 40). |
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        A centralização religiosa, sendo abstrata, ignorava divisões territoriais sobrepondo-se aos poderes locais e estabelecendo um poder único, universal. A possibilidade de uma felicidade na vida eterna, sendo abstrata, oferecia um escape diante da turbulência política, social e econômica da vida terrena (Santos 2006).         Nessa nova configuração, a apresentação abstrata da matemática, com seu distanciamento das coisas da vida e do mundo, se mostrou sintonizada a um pensamento onde as respostas às inquietações humanas eram encontradas na fé cristã, apartada das construções da humanidade. A apresentação procedimental da matemática prosseguiu em seu percurso como ciência nômade, subjugada pela Ciência de Estado, como um “gênero de ciência, ou um tratamento da ciência que parece muito difícil de classificar, e cuja história é até difícil de seguir. Não são ‘técnicas’, segundo a acepção costumeira. Porém tampouco são ‘ciências’, no sentido régio ou legal estabelecido pela História” (Deleuze & Guattari 2012 p. 25). |
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No turbilhão da vida, ciências e tecnologias nem são técnicas, nem tampouco ciências |
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia UFRJ |
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